Dona Santa, grande referência na memória dos maracatuzeiros
ainda na atualidade, foi rainha do Maracatu Nação Elefante. Não sabemos quando
se tornou rainha, apenas que ganhou o cargo ainda mocinha, vinda do maracatu
Leão Coroado, e neste posto permaneceu até sua morte, ocorrida em 1962. Seu
maracatu foi objeto de estudo do maestro César Guerra Peixe quando esteve no
Recife, no final dos anos 1940 e de cuja observação resultou no livro
Maracatus do Recife, publicado em 1955. Quando morreu, já nonagenária,
teve enterro majestoso, digna da rainha que foi. Dona Santa, cujo nome de
batismo era Maria Júlia do Nascimento, é tida como o maior símbolo da cultura
afro-descendente no Recife e em torno de sua vida entretecem-se lendas e mitos,
memória e história.
Fotografia de Lula Cardoso Ayres |
Percorrer as várias fases e faces da vida de Dona Santa tem me
permitido formular diversas questões sobre práticas e representações construídas
em torno da cultura de negros e negras, suas estratégias de inserção e
reconhecimento social, e a constituição de redes de solidariedade diante das
investidas disciplinares que visavam a constituição de uma sociedade “mestiça” e
“racialmente democrática”. Afinal, estamos falando da terra de Gilberto Freyre,
e foi aqui no Recife, nesses anos de 1930, enquanto ele escrevia para os jornais
e publicava livros, organizava congressos e debatia a cultura pernambucana,
nordestina, e brasileira, que Dona Santa foi presa como catimbozeira, ficou
viúva e assumiu o comando de seu maracatu.
Sobre a vida de Dona Santa pouco se sabe efetivamente, além de
dados bastante genéricos e controversos sobre a data de seu nascimento e sobre a
condição de sua família (não sabemos se eram libertos ou não, se africanos ou
crioulos). Sabe-se de seu casamento com o segundo sargento da Polícia Militar,
João Vitorino, e sua eleição como rainha do maracatu Leão Coroado, ainda muito
moça. A partir do momento em que ficou viúva, no final da década de 1920, ao que
tudo indica, Dona Santa ganhou liberdade para firmar sua autoridade como
mãe-de-santo e como líder do maracatu. Este é o período em que transformações
culturais de vulto ocorriam no país, acerca das percepções sobre a cultura
afro-descendente. Trata-se, portanto, de pensar como ao construir sua autoridade
entre os negros e negras, e os intelectuais da cidade, Dona Santa contribuiu
para transformar as representações construídas em torno dos maracatus e da
cultura popular de modo mais amplo.
Fotografia de Pierre Verger |
Quando Dona Santa assumiu a condução do Maracatu Elefante, era
uma mulher viúva, mas se inseria numa rede de sociabilidade que lhe conferia
poder e legitimidade, não só por ser rainha, mas por ser mãe de santo e
juremeira afamada. Com mais de sessenta anos, tinha por obrigação proteger seus
filhos e filhas de santo, e assegurar ao Elefante e seus maracatuzeiros um lugar
ao sol no disputado carnaval recifense. A rainha, ao que tudo indica, cumpriu
muito bem seu papel demonstrando que podia não só liderar seu grupo, mas também
exercer o papel de mediadora cultural, criando condições para que seu grupo se
sobressaísse na cena cultural da cidade, despertando a admiração e o carinho
entre intelectuais, jornalistas, fotógrafos e escritores da cidade e do resto do
país.
Fotografia de Lula Cardoso Ayres, capa da revista Contraponto |
No meio intelectual recifense, Lula Cardoso Ayres e Ascenso
Ferreira contribuíram sobremaneira para divulgar sua imagem, bem como para
quebrar os estigmas que ainda perseguiam os maracatus. Nacionalmente, Dona Santa
foi objeto de uma magnífica reportagem da revista O Cruzeiro, em 1947,
ilustrada com fotografias de Pierre Verger, bem como teve uma pequena
participação no filme de Alberto Cavalcanti, O canto do mar, em 1953. O
maestro e compositor Guerra Peixe escolheu o Elefante como objeto de estudo, e
mais uma vez a rainha foi celebrada nas páginas de Maracatus do Recife,
publicado em 1955. Como resultado dessa popularidade, encontramos
invariavelmente o maracatu Elefante se apresentando em quase todos os eventos em
que autoridades ou celebridades visitavam o Recife entre as décadas de 1940 a
1960.
Dona Santa consolidou fama como rainha e matriarca dos negros e
negras no Recife. Percorrer as notícias publicadas nos jornais no período
comprova que a rainha solidificou uma imagem de poderosa sacerdotisa dos orixás,
além, evidentemente, de juremeira. Sua autoridade entre os maracatuzeiros,
conforme algumas reportagens de jornal, era inconteste. Conta Guerra Peixe que a
rainha não precisava falar muito para manifestar seu desagrado diante de
comportamentos que considerava indevido. Dona de um olhar penetrante, uma mirada
bastava para que até o mais valente dos homens se calasse envergonhado do que
tivesse feito. Possuidora de garbo e majestade, Dona Santa sempre desfilava no
carnaval conduzindo seu maracatu desde Ponto de Parada, na zona norte da cidade
onde se encontrava a sede, até as ruas centrais, apesar de sua avançada idade. E
enquanto desfilava agraciava seus “súditos” com as bênçãos de seu espadim e
cetro. Dona Santa só teria deixado de desfilar em duas únicas ocasiões: a morte
de seu irmão, quando ainda era jovem, e do marido Vitorino.
Acervo do Museu da Cidade do Recife |
Adentrando os anos cinqüenta, no entanto, Dona Santa já
octogenária aceitou a oferta do Prefeito Pélopidas e passou a desfilar nos
carnavais em um jeep. Mesmo assim, não perdeu o controle sobre seu maracatu até
a sua morte, momento que trazia muita apreensão a todos. Desde os anos 1940
encontram-se pelas páginas dos jornais recifenses reportagens que prenunciam a
morte da rainha. Ao final do ano de 1955 a notícia de sua morte correu a
cidade. O prefeito Pelópidas Silveira teria telegrafado a sua família oferecendo
pêsames, bem como auxílio financeiro para a realização do enterro. Mas quem
morrera tinha sido uma princesa. Dona Santa teria rido muito de sua “morte”
porque assim sabia como esta seria recebida pela cidade, e não recusou a oferta
do prefeito para o enterro da princesa!
Acervo do Museu do Folclore (RJ) |
Apesar de sua grande disposição em viver, Dona Santa
preocupava-se com o que aconteceria com o Elefante quando partisse. Não tinha
descendentes diretos, e teria decidido que quando a morte a levasse, o maracatu
também deveria deixar de desfilar. Esta questão é muito controversa na
historiografia, e já provocou grandes debates e contendas calorosas sobre as
razões da rainha. Há quem diga que sua decisão se apoiaria em antigas tradições
africanas, conforme defendeu o jornalista Paulo Viana, que afirmava ser a rainha
descendente de antigos reis, e com ela morria um antigo reinado. Mas houve quem
quisesse ocupar seu lugar! Sua filha adotiva, Antonia, declarou aos jornais, que
continuaria com a tradição. Mas sofreu tamanha oposição daqueles que pensavam
que o maracatu também deveria deixar de existir, que efetivamente o Elefante não
mais saiu às ruas. Foi para o museu!
Outros links interessantes: http://www.jornaliadoed.com.br/2008/01/dona-santarainha-negra.html
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