sábado, 15 de outubro de 2011

Perseguição e intolerância aos Tambores e às religiões de Matriz Africana


Tambores e objetos sagrados apreendidos nos candomblés de Pernambuco pela polícia em 1938 - Recife PE.
Fotógrafo: Luis Saia

Trecho do artigo: *
A POLÍCIA NO ESTADO NOVO COMBATENDO O CATIMBÓ
Zuleica Dantas Pereira Campos
Profa. Adjunto III do curso de História- UNICAP. Doutora em História do Brasil

A importância dada ao papel da Imprensa se tornou referência na interventoria de Agamenon Magalhães. Ela foi tomada como estratégia fundamental para a construção dos ideais do Estado Novo em Pernambuco. Nesse sentido, era a própria reificação da “verdade”, da legitimidade, do discurso da competência e da sabedoria do Estado.
Essas ideias atingiam o cotidiano da população, imprimiam “valores”, na tentativa de apontar “os males sociais” a serem extirpados. Normas e condutas eram sugeridas à população, até mesmo no tocante ao vestuário. O alvo dessas recomendações eram principalmente as camadas pobres oriundas do campo17.
O jornal Folha da Manhã foi o porta-voz do Interventor. Para tanto, esse veículo de comunicação elegeu como um dos seus temas a problemática social. Dentre eles, receberam particular atenção os adeptos das religiões afro-umbandistas, identificados como casos de polícia.
Como já observamos, esses grupos, desde 1930, para poderem funcionar, eram obrigados a solicitar registro especial dos departamentos de polícia local que fixavam, inclusive, taxas18. Essa medida colocou os praticantes da Umbanda19 e das religiões afro-brasileiras20 numa situação dúbia. Teoricamente, os registros permitiam a prática legal da religião. Por outro lado, aumentavam o controle da polícia, como também a possibilidade de intimidação e extorsão. Solicitava-se às seitas, para efeito de registro, a apresentação do seu regulamento. Uma cópia do regulamento de uma das seitas, em funcionamento no Recife na década de 1930, apresentava as seguintes informações:

ESTATUTO DA SEITA AFRICANA EM ADORAÇÃO A SANTA BARBARA SITUADA A RUA FRANCISCO BERENGER Nº 147, LOGAR ENCRUZILHADA
Apolinário Gomes de Mota, babalorixá da referida seita em adoração aos encantados da Costa da África com os seus regulamentos seguintes:

Temos que oferecer os nossos sacrifícios a todos os encantados da Costa da África de conformidade com as ordens e respeito, conforme o rito da seita.
Temos que foncionar as festas depois dos sacrificios oferecidos
a todos os babarumael.
Não poderão os filhos dos santos ir dansar sem que primeiro
não cumpram com seus deveres.
Ir ao peji fazer o seu adobalê aos pés dos santos, aos pés do seu
babalorixá, aos pés de sua inan e sua mãi pequena e ao Ogan.
Não poderão os filhos de santo tomarem bebidas alcoolicas nem
fumarem na ocasião das festas.
Os filhos de santo na ocasião das manifestações terão o direito a
uma iabá como a uma toalha para enchugar todos aqueles que
estiverem manifestados tendo o cuidado para não deixar nem um cair,
estas resposabilidades caberão a mãi pequena e a todas as ilais.21

O estatuto normatizava, organizava os rituais, como também procurava descrever minuciosamente os direitos e deveres de cada participante. Dessa forma, o regulamento revela uma normatização dos rituais, assim como, as relações de poder entre os praticantes da religião. Como assinala Foucault, o poder deve ser analisado como algo que circula, como algo que funciona em cadeia. Nas suas malhas, os indivíduos não só circulam, mas estão sempre em posição de exercer esse poder e de sofrer sua ação. Nunca são o alvo inerte ou consentivo do poder; são sempre centros de transmissão. O poder não se aplica aos indivíduos, passa por eles22.
A percepção do poder estava configurada nas manifestações organizativas da sociedade, em termos de ação, dominação, carisma, autoridade, disciplina e controle. O poder se esboçava, também, a partir da força física dos aparelhos institucionalizados que faziam valer suas decisões. Nessa forma de coerção, ele produz efeitos na sociedade.
Esses efeitos tornam-se mais visíveis quando o secretário de Segurança Pública do Estado de Pernambuco, Etelvino Lins, expede a Portaria proibindo o funcionamento dos Centros Espíritas, baseando-se na Constituição de 1937, que permitia a liberdade de expressão a todos os brasileiros, mas que coibia as práticas viciosas que corrompem e degradam as pessoas. Justificava que era dever das autoridades combater essas práticas, exercendo, assim, a defesa do Estado e da Sociedade.
Sobre o assunto, José Campello, Redator-Chefe da Folha da Manhã, escreve:
A Secretaria de Segurança baixou uma portaria prohibindo em todo o
território pernambucano o funccionamento de seitas africanas e
gabinetes de “sciencias” herméticas. Já tivemos ocasião de analisar em
nossa secção de comentários o acto do sr. Etelvino Lins, focalizando
alguns dos seus aspectos e das sua conseqüências mais úteis á
collectividade. Mas a medida é de tamanha significação para os
nossos costumes e a hygiene mental da cidade, que não perde o
público por insistirmos no assumpto, adduzidos novos argumentos
áquelles primeiros commentarios23

De acordo com Yvone Maggie, a magia, desde os tempos coloniais, dispõe de mecanismos reguladores das acusações a “bruxos e feiticeiros” nos terreiros e locais de culto. No ntanto, foi a partir da República, com o Decreto de 11 de outubro de 1890, que o Estado criou  mecanismos reguladores do combate aos feitiços, instituindo o Código Penal. Três artigos dizem respeito a esta questão: o artigo 156, que se refere à prática ilegal da Medicina; o artigo 157, que estabelece como crime a prática do Espiritismo, da Magia, da Cartomancia, do uso de talismãs, como também a de subjugar a credulidade pública; e, por fim, o artigo 158, que proíbe a prática do curandeirismo24.
Para a autora, o Estado passou, dessa forma, a intervir nos assuntos da magia no combate aos feiticeiros, regulando acusações, criando juízos especiais e pessoal especializado. À medida que os anos passavam, instituições iam sendo criadas na Polícia, para regular este combate, identificar e punir aqueles que eram considerados produtores de malefícios25. Assim, essa ação já formalizada pelo Estado veio a ser utilizada com mais intensidade em Pernambuco, apoiando-se no Capítulo 2 da Constituição Federal dos Estados Unidos do Brasil. Nele, o artigo 122, parágrafo 4, afirma:
Todos os indivíduos de diferentes confissões religiosas podem exercer
pública e livremente o seu culto, associando-se para esse fim e
adquirindo bens, observadas as disposições do direito comum, as
exigências da ordem pública e dos bons costumes.26
No artigo 141, deste mesmo Capítulo, se encontra:
7º Parágrafo – É inviolável a liberdade de consciência e de crença e
assegurado o livre exercício dos cultos religiosos, salvo os que
contrariem a ordem pública ou os bons costumes. As associações
religiosas adquirirão personalidade jurídica na forma da lei civil.
8º Parágrafo – Por motivo de convicção religiosa, filosófica ou
política, ninguém será privado de nenhum dos seus direitos, salvo se o
invocar para se eximir de obrigação, encargos ou serviços impostos
pela lei aos brasileiros em geral, ou recusar os que ela estabelecer em
substituição daqueles deveres, a fim de atender escusa de
consciência27.

O combate ao “catimbó” tinha uma justificativa legal. Sendo assim, as instâncias do poder se eximem do que é praticado, mas acabam incorporando a crença. Se existem catimbozeiros, feiticeiros, embusteiros, é porque se acredita nesse tipo de feitiçaria.
Como assinala Foucault, não existe o discurso do poder de um lado e, em face dele, um outro contraposto. Podem existir discursos diferentes e mesmo contraditórios, dentro de uma mesma estratégia; podem, ao contrário, circular, sem mudar de forma, entre estratégias opostas28.
Essas medidas também expressam o pensamento do Interventor Federal e de seu secretariado. Tomando o Catolicismo como religião oficial do Brasil, empenharam-se na tentativa de apagar da sociedade todas aquelas práticas religiosas que “ameaçavam” a doutrina social cristã, propagada na época.
A Folha da Manhã, de propriedade de Agamenon Magalhães, veiculava a doutrina proposta através do processo de “catequização” da sociedade. Os afroumbandistas deveriam ser desconstruídos, marginalizados e, finalmente, silenciados.
Uma estratégia encontrada foi dar visibilidade às ações praticadas pela Polícia.
Tais ações eram divulgadas, pelo jornal, repetidamente, no período de 1938 a 1945. Eram inúmeras as matérias, com o objetivo de doutrinar, educar, alertar a sociedade para o mal dessas práticas, apresentadas como perniciosas e criminosas. Nas matérias de jornal, os afro-umbandistas eram tratados com expressões preconceituosas, como: catimbozeiros, curandeiros, feiticeiros perigosos, exorcistas, embusteiros, exploradores, patifes, covardes sem escrúpulos, malandros, cavadores de vida fácil.
A estratégia de guerra, de combate, aponta para a construção de um clima social em que a Polícia se apresenta com grande eficiência. As manchetes do jornal são reveladoras da construção dessa representação:
“A polícia no 2º districto combate o baixo espiritismo”29
“Combatendo o Catimbó”30
“Guerra aos catimbozeiros”31
“Combate a magia negra: mais um culto devassado pela polícia”32
“Combatendo os feitiços”33
“A Delegacia de Vigilância Combate a baixa magia”34
“Combatendo os exploradores da crendice popular”35
A palavra combate aparece repetidamente e traz, junto a ela, o efeito de sentido pertinente à eficiência da Polícia. O combate é a guerra, a busca do extermínio de elementos e práticas considerados “dissolventes da sociedade”. É um discurso que busca, através da repetição, infundir na opinião pública que a guerra ou o combate travado entre a polícia e os “catimbozeiros” era eficaz. Em outras palavras o “bem” estava vencendo o “mal”.
Nessa guerra estabelecida do “bem contra o mal”, a palavra contra aparece constantemente:
“Contra o baixo espiritismo”36
“Campanha contra catimbozeiros”37
“Contra o espiritismo e a falsa medicina”38
“Contra o espiritismo” 39
“Contra os catimbozeiros”40
“Contra a baixa magia”41
“Diligência contra catimbozeiros”42
“Contra a atividade dos catimbozeiros”43
É possível observar que a polícia é representada como estando numa campanha das mais intensas. A palavra contra funciona numa relação de força, ou seja: a ordem contra a desordem, a lei contra o crime, o Estado contra o catimbó. Nesses dizeres, a palavra contra também se remete a um outro efeito de sentido: a situação está sob controle, porque estamos diante de um aparato policial forte e determinado que controla, reprimindo as forças contrárias.
Diante das constantes manchetes que anunciavam o “combate”, a guerra, “contra” os catimbozeiros, a palavra “repressão” foi pouco utilizada pelo jornal:
“Repressão aos Catimbozeiros”44
“Repressão ao baixo espiritismo”45
A segunda manchete é apresentada quatro vezes. Nesse sentido, de 1937 a 1945, período em que estudamos as matérias do jornal, a palavra “repressão” apareceu apenas cinco vezes nas manchetes referentes à pratica da Polícia com relação aos afroumbandistas.
Portanto, nesse caso, era necessário incutir na população muito mais um clima de guerra, de combate, que, propriamente, de repressão. Era importante, nesse processo de desconstrução, que ficasse claro: ali se estabelecia uma guerra contra bandidos. E a polícia representava não só o aparato estatal mas também os heróis, os protetores dos cidadãos de bem.
A estrutura dos relatos no jornal é sempre a mesma, quer seja o acusado incriminado por prática ilegal da Medicina, falso Espiritismo ou Curandeirismo, pois a acusação sempre se refere a práticas vistas como capazes de produzir malefícios ou à prática da mistificação:
Foram presos de ordem do Comissario Maranhão, as catimboseiras
Francelina Pereira da Silva, Isabel Pereira do Nascimento, Leonor
Pereira da Silva na ilha de Nictheroy em Afogados.
Tambem foi presa a rua Amador Araujo 95, Areias, a mulher Anna
Alves de Oliveira, vulgo "caboclinha" quando exercia a baixa magia
tendo se "manifestado" perante os investigadores 22 e 49. A policia
apprehendeu cartas, bilhetes, bloco para receitas, receituarios, etc.
etc.46
A polícia, ao divulgar a prisão de acusados por crime de catimbó, sempre repete de quem foi a ordem. No caso das “catimbozeiras” acima citadas, de ordem do comissário Maranhão. A maior parte das matérias são finalizadas, dizendo “A polícia apreendeu”, e aí vem citado, minuciosamente, todo o material apreendido. O leitor do jornal deverá acreditar que os acusados são culpados, pois as provas do crime estão materializadas nos objetos. A arma do crime, no caso, é o próprio crime: a prática ilegal do catimbó materializada nos objetos apreendidos.

17 Cf. ALMEIDA,M.G. A. A. op. cit.,1995.
18Cf. BROWN, D. Umbanda Religion and Politics in Urban Brasil. Michigan: Um Research Press,
1986.
19 Religião formada no Brasil por uma seleção de valores doutrinários e rituais, feitos a partir da fusão dos
cultos africanos, com a pajelança (ritual indígena) sofrendo ainda influências do catolicismo e do
espiritismo.
CACCIATORE, O. G. UMBANDA. In:_______. DICIONÁRIO de Cultos Afro-Brasileiros. 3. ed. Rio de
Janeiro: Forense Universitária,1988. pp.242-143.
20 Religiões de origem africana, reinterpretadas no Brasil pelos escravos e pelos seus descendentes. In:
RIBEIRO, R. Cultos Afro-Brasileiros do Recife: Um Estudo de Ajustamento Social. Recife:
IJNPS,1952.
21 FERNANDES, G. Xangôs do Nordeste: Investigação sobre os cultos negro-fetichistas do Recife.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,1937. p. 23-24.
22 FOUCAULT, M. op. cit., 1997. p. 183.
23 CAMPELLO, J. Xangôs. Folha da Manhã, Recife, 27 jan. 1938, p. 3. Edição Matutina.
24 MAGGIE, Y. Medo do Feitiço: relações entre magia e poder no Brasil. Rio de Janeiro: Arquivo
Nacional, 1992. p. 22.
25 Idem Ibdem. p.23.
26 BRASIL. Constituição (1937) Constituição Federal dos Estados Unidos do Brasil. Rio de Janeiro:
Imprensa Nacional, 1946. p. 38.
27 Idem. p. 38.
28 FOUCAULT, M. op. cit., 1997.
29 Folha da Manhã, Recife, 28 out. 1937. p. 06. Secção O Dia Policial. Edição Matutina.
30 Folha da Manhã, Recife, 10 jul. 1938. p. 08. Edição Matutina.
31 Folha da Manhã, Recife, 18 set.1938. p. 10. Edição Matutina.
32 Folha da Manhã, Recife, 14 mar. 1939. p. 12. Edição Matutina.
33 Folha da Manhã, Recife, 20 mar. 1939. p. 12. Edição Matutina.
34 Folha da Manhã, Recife, 24 out. 1940. p. 05. Edição Matutina.
35 Folha da Manhã, Recife, 10 abr. 1943. p.07. Edição Matutina.
36 Folha da Manhã, Recife, 08 mai. 1938. p. 08. Edição Matutina. ; Folha da Manhã, Recife, 06 jul.
1938. p. 08 Edição Matutina.; Folha da Manhã, Recife, 27 jul. 1938. p.12. Edição Matutina.; Folha da
Manhã, Recife, 12 fev. 1939. p. 12. Edição Matutina.
37 Folha da Manhã, Recife, 09 jul. 1938. p. 08. Edição Matutina.
38 Folha da Manhã, Recife, 17 ago. 1938. p. 12. Edição Matutina.
39 Folha da Manhã, Recife, 19 ago. 1938. p. 12. Edição Matutina.
40 Folha da Manhã, Recife, 23 ago. 1938. p. 12. Edição Matutina.
41 Folha da Manhã, Recife, 03 jun. 1939. p. 12. Edição Matutina.
42 Folha da Manhã, Recife, 29 set. 1939. p. 12. Edição Matutina.
43 Folha da Manhã, Recife, 06 nov. 1940. p. 05. Edição Matutina.
44 Folha da Manhã, Recife, 17 out. 1938. p. 06. Edição Matutina.
45 Folha da Manhã, Recife, 09 fev. 1939. p. 12. Edição Matutina. ; Folha da Manhã, Recife, 08 mai.
1943. p.07. Edição Matutina.; Folha da Manhã, Recife, 03 set. 1943. p.07. Edição Matutina.; Folha da
Manhã, Recife, 02 nov. 1943. p. 07. Edição Matutina.
46 Prisão de Catimboseiros. Folha da Manhã, Recife, 03 jul. 1938. p. 08. Secção O Dia Policial. Edição
Matutina.
Revista Brasileira de História das Religiões – Ano I, n. 3, Jan. 2009 - ISSN 1983-2859
Dossiê Tolerância e Intolerância nas manifestações religiosas
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Tambores e objetos sagrados apreendidos nos Candomblés de Pernambuco pela polícia em 1938 - Recife PE.
Fotógrafo: Luis Saia


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